Introdução
Com a avalanche de inovações tecnológicas, são demandadas constantes adaptações às lógicas de funcionamento dos produtos culturais audiovisuais seriados, principalmente, devido às novidades tecnológicas serem imprescindíveis para a atualização de suas técnicas de produção, distribuição e consumo. Segundo Kellner[1], nessa cultura da mídia onde os meios comunicacionais se alocam, é também onde se operacionaliza a natureza e a forma das produções da indústria cultural, sendo indissociável o caráter cultural do tecnológico-industrial que a mídia tem em relação aos seus produtos. Portanto, ao mesmo tempo que há a possibilidade de reprodutibilidade na produção guinada pela tecnologia, é possível compreender o viés cultural responsável pela busca da representação do real nas narrativas desses culturais audiovisuais seriados.
Os textos e as imagens engendrados na cultura da mídia
[…] não são simples veículos de uma ideologia dominante nem entretenimento puro e inocente. Ao contrário, são produções complexas que incorporam discursos sociais e políticos cuja análise e interpretação exigem métodos de leitura e crítica capazes de articular sua inserção na economia política, nas relações sociais e no meio político em que são criados, veiculados e recebidos[2].
Com essa afirmação do estudo cultural crítico kellneriano, pode-se afirmar a importância de examinar e indagar as representações contidas nos produtos culturais tendo em vista que eles são capazes de pautar temáticas e problemáticas contemporâneas. Por isso, explorar o caminho das escolhas técnicas realizadas para atingir a construção daquilo que os produtos culturais audiovisuais desejam reproduzir como discurso é uma opção de reflexão científica. Tendo isso em vista, o objetivo deste estudo é compreender como os regimes de sentidos são articulados a partir dos traços de corporeidade representados imageticamente no primeiro episódio, intitulado Hora do Lipsync, da primeira temporada da série da Netflix brasileira, SuperDrags por meio de uma análise semiótica discursiva.
De maneira geral, a intenção dessa análise semiótica é observar como a formação de regimes de sentido se operacionaliza por meio de referências à corporeidade, além de notar até que ponto a ordem binária de gênero e a regulação do corpo por padrões estéticos de beleza podem interferir na demarcação das fronteiras de sentido no âmbito corporal. Para tanto, centraliza-se a atenção nas representações de corpo presentes durante a narrativa da série, sejam as que são referentes às personagens ou aquelas que servem para a composição do cenário do produto cultural audiovisual seriado em análise.
Delimitando esse estudo, pode-se afirmar que ele se divide em seis partes. A primeira consiste em discutir a capacidade que o corpo tem de carregar sentido consigo e transmitir esse mesmo sentido aos indivíduos. A segunda secção é complementar da primeira já que nessa se aborda a problemática do processo de marcação de gênero sobre o corpo. Já na terceira secção, a semiótica greimasiana de vertente francesa, metodologia de análise adotada, é apresentada. Em seguida, a análise semiótica proposta é exposta como quarta parte. E, para finalizar, a quinta parte desse estudo são as considerações apreendidas depois de toda a reflexão realizada a partir da análise seguidas das referências que são a sexta e última parte.
Corpo como portador de sentido
Cabe uma secção nesse estudo abordar a discussão a respeito do corpo, pois afinal a sua representatividade na série SuperDrags compõem o nosso corpus de análise; portanto, é importante aqui pontuar que a corporeidade pode ter caráter social, cultural, simbólico e imaginário na sociedade. Diante dessa perspectiva em que aspectos corporais uma vez representados podem servir de ancoragens de sentidos para muitos contextos, sendo aproveitado por muitos produtos audiovisuais, como é o caso do objeto desse trabalho, pode-se concluir que a temática do corpo preenche um espaço de discutibilidade nas ciências sociais.
No século XX, especificamente, no fim da década de 1960, o ser humano passa por uma crise de legitimidade referente a sua relação consigo, com os outros e com o próprio mundo. Como fruto desse momento turbulento, houve a ampliação e a emergência da discussão de temáticas cuja principal pauta era o corpo além de como se dava a relação da humanidade para e com ele. Os estudos feministas, a “revolução sexual”, a pesquisa da expressão corporal, o body-art, a crítica do esporte são algumas decorrências empíricas desse momento na história que visava um novo imaginário do corpo e do qual nenhum viés da prática social permaneceu estagnado perante as reivindicações da condição corporal[3].
Segundo Maffesoli[4], o corpo engendra comunicação a partir de um ponto de vista tanto de dimensão natural como social graças ao simples fato de ele estar presente e ser visto, ocupando um espaço e facilitando a tatilidade. Num aspecto comunicacional, o que Le Breton[5]. reforça é que, “emissor ou receptor, o corpo produz sentidos continuamente e assim insere o homem, de forma ativa, no interior de dado espaço social e cultural”.
Com isso, entende-se que a corporeidade humana é capaz de servir como um eixo para a objetificação das representações e dos imaginários na intenção de explanar fenômenos sociais e culturais; entretanto, é válido ressaltar que
[…] o corpo parece explicar-se a si mesmo, mas nada é mais enganoso. O corpo é socialmente construído, tanto nas suas ações sobre a cena coletiva quanto nas teorias que explicam seu funcionamento ou nas relações que mantém com o homem que encarna. A caracterização do corpo, longe de ser unanimidade nas sociedades humanas, revela-se surpreendentemente difícil e suscita várias questões epistemológicas. O corpo é uma falsa evidência, não é um dado inequívoco, mas o efeito de uma elaboração social e cultural[6]
Em outras palavras, a corporeidade pode ser compreendida então como uma estrutura simbólica dotada de competência para ser uma superfície onde se pode projetar variadas formas culturais. Sendo assim, segundo Maffesoti[7], todos os fragmentos de uma sociedade criam um mosaico colorido e cujas figuras são intercambiáveis e matizadas a fim de dar sentido a esse mosaico que é, na verdade, o próprio presente temporal e é ainda nesse “jogo da aparência, onde o corpo se exibe em uma teatralidade contínua e onipresente”.
Corpos marcados
Em sociedade, o corpo sofre marcações capazes de regular sua condição de existência. Essas delimitações que são impelidas no corpo podem ser regidas pelos traços de gênero que se categorizam, majoritariamente, em feminino e masculino que são engendrados de maneira construtiva e social. Entretanto, como observa Butler[8] a denominação de gênero e até mesmo a de sexo são controladas de maneira compulsória por leis binárias de classificação, pautadas na heteronormatividade e no heterossexualismo.
Especificamente, o corpo inserido, então, nesse regime regulador, é como “uma fronteira variável, uma superfície cuja permeabilidade é politicamente regulada, uma prática significante dentro de um campo cultural de hierarquia do gênero e da heterossexualidade compulsória”[9]. Diante dessa perspectiva, retoma-se que a marcação do gênero no corpo, nada mais do que a tradução de estilos corporais, movimentações e gestos que são variantes internas dos indivíduos, numa superfície que operacionaliza como uma página em branco cujo produto final se encontra em constante mutação.
Le Breton, também, concorda com essa visão que abarca a construção da corporeidade no domínio cultural uma vez que afirma que
[…] a aquisição das técnicas do corpo pelos atores depende de uma educação quase sempre muito formalizada, intencionalmente produzida pelo entorno da criança – ou do adulto que procura fazer um outro uso das coisas do mundo – . Nessa educação, a parte do mimetismo tem uma influência que não pode ser negligenciada. Cada aquisição aparece como o produto de um aprendizado específico ligado a diferentes dados – um período preciso da vida do ator, a idade, o sexo, o status social, a profissão, etc[10].
Com as marcações de gênero em aspectos da corporeidade sendo então interpretadas pelo indivíduo, é possível de se notar progressivamente uma consonância dessas fronteiras de feminino e masculino impostas com as vontades do sistema de patriarcado que permeia a história da humanidade enquanto sociedade. A partir disso, concede-se um caráter de poder às questões de gênero e consequentemente em como elas são materializadas no corpo.
Tal como Foucault[11]ressalta, o corpo é simultaneamente alvo e objeto de poder. Conforme o pensamento do filosofo, com a vigilância da sociedade, o corpo é passível de ser domesticado e disciplinado, e contemporaneamente, a regulação de gênero busca reproduzir essa ordem encaixando as representações corporais na definição binária feminino-masculino.
A respeito da interpretação desse feminino e masculino, a partir de artifícios culturais ainda é valido indicar que há um controle social cujas funções são sistematizadas muitas vezes segundo o gênero. Ademais, como também afirma a historiadora Susan Bordo[12], num ponto de vista histórico, a normatização e o disciplinamento do corpo, principalmente, feminino, deve ser reconhecido como uma estratégia que busca manter a ordem patriarcal.
Portanto, tendo em vista a supervalorização da expressão feminina orientada especificamente às mulheres que se presentifica fortemente nas sociedades ocidentais, se reconhece a distinção dos aspectos de corporeidade atribuídos aos homens e às mulheres de maneira a assinalar a intervenção de uma regulação nos estilos corporais, posturas, movimentações e gestos dos indivíduos.
Todavia, é importante frisar que a construção do gênero tendo o corpo como um parâmetro não é estável, é fluida pelo tempo, decorrente então da percepção de vários atos, gestos, posturas, atitudes, comportamentos e desejos instaurados no próprio ser; os quais, uma vez sendo externalizados, tornam possível a percepção do gênero. E, ainda segundo Butler[13], essa percepção só se torna exequível por conta das repetições estilizadas de práticas que se materializam no corpo por meio da relação espaço-tempo da história da sociedade e do próprio indivíduo.
A Semiótica Francesa de Greimas
Antes de debruçar sobre os parâmetros teóricos semióticos que serão importantes para a nossa análise, é conveniente lembrar que a semiótica se apresenta em três principais correntes: a americana, a francesa e a russa. Diante dessa nota, é importante ponderar que este estudo incorpora como aporte teórico a perspectiva da semiótica discursiva francesa, constituída pelo linguista lituano, radicado na França, Algirdas Julien Greimas.
Greimas [14]defende a premissa que “[…] o mundo humano se define essencialmente como o mundo da significação. Só pode ser chamado ‘humano’ na medida em que significa alguma coisa”, sendo assim compreender o processo das significações facilita o entendimento de um denominador comum para aquilo que é considerado humano. Nesse intuito, então, as ciências humanas empreendem esforços científicos e uma dessas tentativas intelectuais é a semiótica.
A semiótica de linha francesa tem filiação saussuriana e hjelmsleviana, sendo respaldada por uma teoria da linguagem, logo, em sua concepção, entende que a língua é uma instituição social que tem postulados estruturais. Fora a influência da teoria da linguagem, a semiótica de vertente francesa sofreu influência da antropologia e da filosofia que são elementos fundamentais para a Semântica estrutural: pesquisa de método, obra fundadora da disciplina cuja primeira publicação foi em 1966 na França. Nela, Greimas explicita a adoção da linha da antropologia cultural por conta da influência dos percursos teóricos de Lévi-Strauss e de Marcel Mauss, além de delimitar a influência da fenomenologia, o ramo filosófico também presente no trajeto intelectual da semiótica graças à inspiração na obra de Merleau-Ponty.
Ainda Bertrand[15] reforça que “o objeto da semiótica é o sentido”, que nada mais é do que o resultado da função semiótica da linguagem. Para tanto, então, a semiótica reúne os planos da expressão e do conteúdo para compreender o sentido. O fator responsável por discernir os estudos semióticos de outros tais como os históricos e antropológicos que têm também o sentido como objeto de pesquisa é a questão do “parecer do sentido” que se apreende, no caso da semiótica, pela linguagem verbal, não-verbal (gestual, plástica, musical, visual etc.) ou até mesmo sincrética, como, o cinema.
Já que o sentido é o cerne de estudo da semiótica, é válido apontar que “o sentido enquanto forma do sentido, pode ser definido então como a possibilidade de transformação do sentido”[16], ou seja, gerar sentido é modificar um sentido dado. Dessa maneira, para articular o sentido, é necessária a significação a qual é reconhecível após o fracionamento e a hibridização dos elementos que se alinham para a apreensão de sentido e consequentemente de significação.
Portanto, a semiótica, como uma escolha metodológica, dá mais visibilidade à descrição e à explicação das maneiras utilizadas para a constituição do sentido de textos em geral, como um todo, do que para a semântica propriamente, por ela se limitar às frases e às palavras, assim se estabelece a percepção do sentido como “o lugar não linguístico onde se situa a apreensão da significação”[17]. Em outras palavras, a significação está concentrada no parecer do sentido do texto e não no viés ontológico de cada frase ou palavra que o compõem. Até, por isso que a semiótica greimasiana implica que a noção de texto remete a tudo aquilo que produz sentido possibilitando que uma canção, uma fotografia, um filme sejam textos.
Em vista disso,
a teoria semiótica procura, portanto, explicar os sentidos do texto. Para tanto, vai examinar, em primeiro lugar, os mecanismos e procedimentos de seu plano de conteúdo. O plano de conteúdo de um texto é, nesse caso, concebido, metodologicamente, sob a forma de um percurso gerativo[18].
Em suma, a perspectiva greimasiana precede que qualquer texto pode ser dividido em camadas com as quais se constitui o percurso gerativo de sentido. Gerativo, porque traça o caminho de produção de sentido de um texto a partir de seu ponto mais simples e abstrato para seu ponto mais complexo e concreto. Sucintamente, para se entender o texto, o leitor deve seguir uma sequência de abstrações que inicia na superficialidade do texto e segue, paulatinamente, até o âmago do texto para a apreensão de seu sentido.
São três as camadas constituintes do processo gerativo de sentido e é primordial lembrar que cada um desses três níveis possui estruturas autônomas capazes de interferir na apreensão de sentido, afinal a interação entre esses patamares de todo o processo gerativo é a responsável por projetar o sentido do texto como um todo. Sendo assim, cada um dos níveis possui uma sintaxe e uma semântica próprias. Uma sintaxe, responsável por ordenar os conteúdos que, por sua vez, se encontram no domínio da semântica.
O primeiro dos três níveis é o fundamental onde a significação do conteúdo emerge a partir de uma oposição semântica mínima do enunciado do texto que alocada num quadrado semiótico é capaz de exprimir a sintaxe das transformações dos termos no processo de geração de sentido[19]. As relações estabelecidas nesse quadrado podem ser de contrariedade, contradição e implicação.
Já o segundo nível é o narrativo onde se apresenta a narrativa do texto e se operacionaliza o enunciado narrativo caracterizado pela relação entre o sujeito e o objeto podendo ser explicitada por um enunciado de estado ou um enunciado de fazer[20]. Além disso, o conteúdo semântico do quadrado semiótico do nível anterior concretiza-se em valores do sujeito e imbricados em objetos com os quais o tal sujeito mantém relações de conjunção e disjunção[21].
Nesse ponto, ainda é plausível indicar que cada narrativa desenvolvida tem um esquema canônico a ser seguido por pressuposição sendo dividido em três trajetos: o da manipulação, o da ação e o da sanção. A manipulação pode ser realizada pela sedução, tentação, provocação ou intimidação e basicamente consiste nas estratégias que um sujeito-destinador tem em fazer com que um sujeito-destinatário aceite seu contrato e faça o que ele, sujeito-destinador, quer; já o trajeto da ação é que esse sujeito-destinatário aceita o contrato e faz a ação acordada e a sanção corresponde a esse sujeito-destinatário fazer com que o sujeito-destinador reconheça que ele cumpriu o contrato, podendo então sofrer uma sanção positiva, e caso aconteça o descumprimento do contrato, uma sanção negativa[22].
O último nível é o discursivo onde os actantes, ou seja, os objetos, os sujeitos, os destinatários e os destinadores se tornarão atores de um discurso-enunciado num espaço-tempo e tematizado pelos investimentos semânticos explicitados nos valores do sujeito e do objeto. Ou seja, “[…] as oposições fundamentais, assumidas como valores narrativos, desenvolvem-se sob a forma de temas e, em muitos textos, concretizam-se por meio de figuras”[23] (Barros, 2005, p. 16).
Tomando o nosso objeto de estudo, ainda cabe explanar a ideia do exercício do fazer persuasivo (fazer-crer) no plano do enunciador e do fazer interpretativo (crer ou não/poder ou não aderir) no plano do enunciatário naquilo que concerne o percurso gerativo de sentido. Posto isso, aponta-se que
tanto a persuasão do enunciador quanto a interpretação do enunciatário se realizam no e pelo discurso. Para conhecer esses fazeres e, consequentemente, o enunciador e o enunciatário, torna-se necessário, portanto, analisar o texto em todos os níveis do percurso gerativo. É certamente no nível das estruturas discursivas que mais se revelam as relações entre enunciador e enunciatário, que há mais pistas da enunciação”[24].
Diante disso, o fazer-interpretativo do enunciatário exige tanto um reconhecimento como uma identificação daquilo que o enunciador propõe como “verdade” operacionalizando ainda o que o enunciatário já detinha de crença. Por isso que o enunciador do discurso é capaz de deixar rastros para direcionar o fazer-interpretativo do enunciatário a fim de que ele acredite no que se está dizendo.
Pode-se afirmar que, por se estar analisando um texto que consiste num produto audiovisual seriado, existem muitos textos sincréticos na sua construção, tanto no nível das imagens como no nível das palavras. Por conseguinte, há uma certa dificuldade em analisar as especificidades imanentes de todas as linguagens que compõem nosso objeto de pesquisa, o produto audiovisual seriado.
Como afirmam Aumont e Marie[25], em análises de produções audiovisuais, não se tem uma metodologia estabelecida como universal para uma melhor apreensão de resultados. Analisar qualquer tipo de filme é um exercício descritivo, logo, uma forma de explicar os fenômenos observados nas produções fílmicas é racionalizando-os. Portanto, para os autores, é necessário que o analista elabore, a partir da decomposição dos elementos da obra audiovisual, um sistema interpretativo pertinente à obra e considerando “uma tal neutralidade científica”.
Com isso, nas práticas metodológicas desse trabalho,adota-se a perspectiva da semiótica discursiva francesa, já destrinchada anteriormente, como aparato teórico-analítico a fim de procurar compreender melhor os traços de corporeidade presentes na série SuperDrags,os quais podem ser pautados como mediadores de fenômenos sociais, culturais, simbólicos e imagináriosmanifestados na sociedade,e como dialogam com a abordagem e proposta da produção da série. E, para nossa análise, o objeto de estudo foi recortado tendo como corpus o primeiro episódio da animação, especificamente, uma cena cuja relevância dentro da narrativa é alta por ser um momento clímax importante para a construção de toda a história.
Análise Semiótica
SuperDrags é uma produção animada seriada destinada para o público adulto e produzida pela filial brasileira da Netflix. O enredo da atração, basicamente, abrange percurso de três colegas de trabalho gays, Patrick, Ralph e Donizete, que têm vidas duplas como drag queens[26] super-heroínas, Lemon, Safira e Scarlet. A história da série aborda como esse trio salva a comunidade LGBTI+[27] de possíveis ataques preconceituosos daqueles que tentam de alguma maneira atingir os membros da coletividade.
A inspiração de produzir a animação surgiu de uma conversa despretensiosa entre os seus criadores, Fernando Mendonça, Paulo Lescaut e Anderson Mahanski, após um dia de trabalho numa sexta-feira[28]. Uma curiosidade sobre a dublagem da série é que a sua versão em língua portuguesa conta com a participação de duas personalidades importantes da cena LGBTI+ brasileira: a drag queen Silvetty Montilla e a cantora, também drag queen, Pabllo Vittar. Além disso, a dublagem de SuperDrags na língua inglesa conta com a participação de drag queens de grande influência da cena drag estadunidense[29]. Portanto, o conceito de SuperDrags visa a caracterização do universo LGBTI+ com as identidades das personagens evidenciando os diferentes tipos de indivíduos que compõem a diversidade da comunidade LGBTI+, desde seus membros e aliados até aqueles que prorrogam ódio à coletividade. Ademais, nosso objeto de estudo impele em seu discurso a todo o momento a disfunção do modelo de binaridade que regula, por sua vez, o gênero. Em outras palavras, o contrato que SuperDrags procura estabelecer como enunciador com o enunciatário é a subversão dos aspectos que regulam o gênero e uma das maneiras que essa subversividade é engendrada na série é pelos traços de corporeidade.
Como corpus desta análise, recortamos o primeiro episódio da série, intitulado Hora do Lipsync, no qual há a apresentação das personagens e do enredo da trama inserindo o enunciatário ao perfil de narrativa que ele vai encontrar, além de também, já propor, como enunciador a quebra da normatividade dualística reguladora de gênero embasada na distinção do feminino e do masculino.
Ao seguir no processo metodológico do percurso gerativo de sentido de Greimas, é necessário refletir no nível discursivo esse caráter subversivo do objeto de análise em imputar holofotes sobre as problemáticas de gênero e nudez, não somente no que concerne especificamente a temática, os enunciatários e os enunciadores, mas igualmente perceber como o plano de expressão se relaciona com o plano de conteúdo para a construção discursiva de SuperDrags Nesse âmbito, pode-se registrar a composição de toda a mise en scène de nosso corpus de pesquisa uma vez que ele apresenta traços de corporeidade cuja intenção é incomodar o enunciatário afinal seus formatos geralmente fazem alusão a regiões corpóreas consideradas íntimas, como seios, pênis e nádegas, com o intuito de naturalizar a nudez divergindo de um discurso mais conservador e tradicionalista.

Fonte: Pereira & Mahanski (2018).
Além do mise en scène, a composição das personagens também visa provocar o enunciatário porque, afinal, partes do corpo consideradas íntimas são hiperbolizadas na intenção de corroborar o discurso liberal que a série tem e a naturalização da nudez. A composição das protagonistas quando adquirem seus trajes de super heroínas é outro elemento do campo da expressão que merece ser destacado por romper com o conservadorismo ligado à nudez além de promover a discussão das normas de gênero visto que a transformação das personagens principais busca a representação de características de corpos femininos, mesmo as protagonistas sendo homens biológicos.

Fonte: Pereira & Mahanski (2018).

Fonte: Pereira & Mahanski (2018).

Fonte: Pereira & Mahanski (2018).
Com essas observações, pode-se averiguar que a temática LGBTI+ abordada na série é permeada no decorrer de todo o primeiro episódio pelo discurso do enunciador, ou seja, da própria produção de SuperDrags, que pretende perturbar a regulação de gênero estabelecida pela dualidade feminino-masculino abordando o universo das drag queens. Alinhado a essa temática e a essa abordagem, outro ponto do discurso desse enunciador é fazer com que o enunciatário interprete por meio dos arranjos dos traços de corporeidade restritos as representações de seios, pênis e nádegas a provocação à discussão da normatividade de gênero projetando as questões de feminilidade e masculinidade embutidas nas regulações de gênero; além ainda de promover que a nudez é algo inerente a todos, naturalizando-a.
À luz da teoria semiótica discursiva, o segundo passo é avaliar a narrativa já que esse nível dispõe do programa narrativo principal do episódio. A cena em análise possui uma performance de manipulação por tentação e seduçãoexecutada, na verdade, por uma das antagonistas da história do produto audiovisual. Essa vilã chamada Lady Elza é uma idosa cujo corpo não aparenta boa forma física sendo assim o objeto de valor desse sujeito é o desejo de alcançar um corpo de aparência jovial e atlética. Para isso, a personagem necessita de um objeto modal para conseguir fazer a sua performance que é, no caso, a capacidade de sugar o highlight – termo utilizado para designar uma suposta energia vital que todas as pessoas LGBTI+ têm – para renovar suas energias e rejuvenescer. Com esse intuito, a antagonista engana as pessoas LGBTI+ com cookies para que assim que distraídas não notem que ela está sugando suas anergias.
Com isso, conclui-se que Lady Elza está numa posição disjuntiva com a representação de um corpo ideal segundo os padrões estéticos que preveem um corpo feminino com seios fartos, cintura fina e um quadril largo. Logo, para a vilã, o fato de seu corpo não estar consoante com aquele que o discurso conservador propõe para ser designado como feminino, submete-a a uma relação disfórica, sendo que conquistar o rejuvenescimento e o corpo conforme aqueles dos padrões de beleza remete-a a uma relação eufórica.
Sendo assim, o desempenho da antagonista é sancionado e valorado positivamente já que ela consegue o que quer atingindo um corpo jovial representado segundo os preceitos de beleza de ordem feminina, ou seja, com seios fartos, cintura fina e quadril largo, sendo condizente com o discurso conservador. Já para o discurso liberal, a euforia consistiria na personagem aceitar seu corpo como ele é sem se preocupar com as normas de beleza e de gênero que afligem o corpo feminino; e a disforia, nesse caso, abrangeria a busca incansável pelo corpo feminino dito perfeito.

Fonte: Pereira & Mahanski (2018).

Fonte: Pereira & Mahanski (2018).
Por fim, no nível fundamental, a oposição semântica sobre a qual o conteúdo relacionado ao corpo se constrói pode ser enquadrada da seguinte maneira no quadrado semiótico a seguir:

Fonte: Produção própria.
As categorias semânticas contrárias “liberal” e “conservador” se configuram como elementos-guias para a construção não só do exemplo narrativo explanado anteriormente, como também, para a construção discursiva de SuperDrags, como um todo. É possível afirmar isso, porque a intenção da série é mesmo consolidar um discurso liberal sobre a visão conservadora em relação ao gênero, à nudez e aos padrões estéticos de beleza; ou seja, todos, relacionados à corporeidade.
De acordo com caminho metodológico da semiótica discursiva, ao atingir o que é considerado liberal, que é, na verdade, a incitação da subversão dos padrões estéticos corporais regulados pela norma binária de gênero (feminino-masculino) e pelo pudor à nudez, a série busca se reafirmar como um produto cultural que ao passo que entretém, também foca em problemáticas da ordem social tais como já explanados: a nudez, a regulação do corpo e as questões de gênero. Contudo, é possível que haja algumas situações presentes na narrativa da série em que a dominação dos padrões estéticos de beleza, da regulação de gênero e do pudor à nudez reverberem, indicando um discurso que concorda, mesmo que temporariamente, com a submissão daqueles que não se encaixam nas normas dominantes. Logo, caso não acontecesse a subversão, esses momentos da narrativa resultam numa indicação não liberal, concluindo na afirmação daquilo que é conservador.
No caminho reverso, a série, ao conotar uma atribuição conservadora em alguns momentos da narrativa, presume atingir um estado de não conservador quando propõe desconstruí-la, porém o estado liberal só é possível de ser atribuído graças à subversão total dos conceitos associados ao gênero, ao corpo e à nudez defendidos por aquela visão conservadora.
Portanto, o “conservador” está relacionado a situações pelas quais se reproduz um discurso tradicional e regrado pela binaridade de gênero, que por sua vez, exerce pressão sobre as normas que envolve o corpo. Enquanto, o “liberal” é o elemento-chave para que os sujeitos possam romper as barreiras impostas pelo conservadorismo a fim de conquistar o reconhecimento de seu espaço identitário.
Considerações Finais
Analisando a perspectiva da corporeidade em SuperDrags, como objeto de estudo dessa análise semiótica, muitos aspectos poderiam ter sido abordados, porém a escolha do corpus foi tendenciada a convergir as questões de gênero, as convenções de beleza atribuídas ao corpo e a própria nudez. Para a uniformidade dessa convergência temática, o percurso gerativo de sentido, da semiótica francesa, foi de extrema importância para que, mais concreta e analiticamente, o “parecer do sentido” fosse apreendido pelas linguagens escolhidas pela produção da série na sua confecção, para que assim os discursos embutidos ali pudessem ser materializados.
Por isso que para a semiótica esse “parecer” do sentido é construído pelo e no discurso, para tanto que elementos tais como sons, sujeitos e espaços são capazes de compor interrelacionando-se uma gama de significado. Deste modo, SuperDrags, por meio de toda sua narrativa, consegue traduzir um discurso que prevê o desmantelamento da regulação do corpo regida pelo gênero, pela ditadura da beleza e pelo constrangimento causado pela nudez.
Mais relativamente às questões de gênero, pode-se afirmar que os elementos opostos que compõem o quadrado semântico da análise semiótica são esquematizados a partir da ideia da relação do corpo e da operacionalização da regulação de gênero, principalmente, atuante sobre o corpo feminino. Uma vez que a feminilidade quando materializada no corpo a partir de premissas oriundas dos discursos tradicionalistas e patriarcais, é capaz de ter cerceada a sua liberdade por limitar e estigmatizar o que é ser mulher. Com isso, pode-se ponderar que a construção de um corpo feminino ainda é pautada num viés cultural conservador disseminado graças às normas de gênero que sustentam o sistema binário feminino-masculino. Logo, essa maneira de reger os gêneros e os corpos impede uma construção mais liberal, e até mesmo individual, da construção do ser, e, consequentemente, do ser homem e ser mulher.
E, por fim, tal perspectiva é mais nítida na concretização do conteúdo do quadrado semântico no nível narrativo, quando a antagonista tem o corpo feminino considerado culturalmente perfeito como objeto de valor repercutindo certo conservadorismo. Ademais, no nível discursivo, é possível aferir que o discurso do enunciador, – produção de SuperDrags – em busca de subverter as regulações de gênero utilizando traços de representação corporal faz referência à categoria semântica liberal já que promove um fazer-interpretativo no enunciatário – espectadores de SuperDrags – que naturaliza, por sua vez, os corpos masculinos e femininos ao mesmo passo que confronta as normas reguladoras de gênero.
[1] D. Kellner, A cultura da mídia – estudos culturais: identidade e política entre o moderno e o pós-moderno. Bauru: EDUSC, 2001, p.52
[2] Ibidem, p.13.
[3] D. Le Breton. A sociologia do corpo, 2ª ed, [Trad. Sônia M.S. Fuhrman], Rio de Janeiro: Vozes, 2007, p.9.
[4]M. Maffesoli. No fundo das aparências, [Trad. Bertha Halpern Gurovitz], Petrópolis: Vozes, 1996, pp-133-34.
[5] D. Le Breton. A sociologia do corpo, cit. p.8.
[6] Ibidem, p.26.
[7] M. Maffesoli. No fundo das aparências, cit., p. 13.
[8] J.P.Butler. Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
[9] Ibidem, p.198.
[10] D. Le Breton. A sociologia do corpo, cit., p.43.
[11] M. Foucault. Vigiar e Punir: o nascimento da prisão, 36ª ed, Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1987.
[12] S.R. Bordo. O corpo e a reprodução da feminidade: uma apropriação feminista de Foucault, in: Gênero, Corpo e Conhecimento, Alison M. Jaggar & Susan R. Bordo (Eds.), [Trad. Brítta Lemos de Freitas], Rio de Janeiro: Record: Rosa dos Tempos, pp. 19-41, 1997, pp. 20-21.
[13] J. P. Butler. Problemas de Gênero, cit., pp. 200-1.
[14] A. J. Greimas. Sobre o sentido – ensaios semióticos, Petrópolis: Vozes, 1975, p. 11.
[15] Denis Bertrand. Caminhos da semiótica literária, Bauru: EDUSC, 2003, p.11.
[16] A.J. Greimas. Sobre o sentido – ensaios semióticos, Petrópolis: Vozes, 1975, p.15.
[17] Algirdas Julius Greimas. Semântica estrutural: pesquisa de método, [Trad. Haquira Osakabe e Izidoro Blikstein], 2ª ed, São Paulo: Cultrix/Editora da Universidade de São Paulo, 1976, p.15.
[18] D. L. Pessoa de Barros. Teoria semiótica do texto, 4ª ed, São Paulo: Editora Ática, 2005, p. 188.
[19] Ibidem, p.14
[20] Id, op., cit, pp.20-2.
[21] D. L. Pessoa de Barros. Estudos do discurso, in: Introdução à Linguística II: princípios de análise, José Luiz Fiorin (Org.), São Paulo: Contexto, 2003, pp. 187- 208, in particolare p. 191.
[22] Ibidem, pp.191-2.
[23] D. L. Pessoa de Barros. Teoria semiótica do texto, 4ª ed, São Paulo: Editora Ática, 2005, p.16.
[24] Ibidem,pp. 60-1.
[25] J. Aumont & M. Marie. A análise do filme, 2ª ed, Lisboa: Edições Texto & Grafia, 2004, p.14.
[26] Segundo o pensamento de Chidiac e Oltramari (Maria Teresa Vargas Chidiac & Leandro Castro Oltramari. Ser e estar drag queen: um estudo sobre a configuração da identidade queer, “Estudos de psicologia”, 9, 3, 2004, pp. 471-478, p.471) pode-se aferir que há uma associação à arte em ser drag queen devido toda a produção girar em torno de uma personagem caricata e luxuosa alocada num corpo feminino. Ademais, esse corpo feminino é o responsável por inspirar o trabalho artístico expressado por processos performáticos como a dança, a dublagem e a encenação.
[27]A sigla LGBTI+ engloba Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais ou Transgêneros e Intersex em T. Reis. (Org.). Manual de Comunicação LGBTI+, Curitiba: Aliança Nacional LGBTI/GayLatino, 2018.
[28] Disponível em: https://g1.globo.com/pop-arte/noticia/2018/11/09/super-drags-desenho-para-adultos-sobre-drag-queens-super-heroinas-estreia-apos-criticas.ghtml. Acesso em: 09 de out de 2019.
[29] Disponível em: https://www.metropoles.com/colunas-blogs/vozes-lgbt/super-drags-o-que-esperar-das-novas-heroinas-da-netflix. Acesso em: 09 de out de 2019.