Reflexões sobre identidade feminina por meio de uma análise discursiva do canal joutjout prazer

[1]

1. Introdução

Uma das plataformas mais importantes da comunicação no contexto contemporâneo é o YouTube[2], site que teve início como um simples acervo de conteúdo audiovisual. Com a sua evolução, a plataforma se tornou um dos sites mais acessados do mundo e um dos principais divulgadores de séries, filmes, músicas e videoclipes. O YouTube ainda reúne diferentes artistas, amadores e profissionais, que fazem vídeos de si mesmos e expõem o seu trabalho livremente, já que o compartilhamento dos vídeos pode ser feito por qualquer um que possua uma conta na página.  Isso permitiu o surgimento de diversos formatos característicos do site como os vídeos de resenhas, vlogs, covers e tutoriais (FONTENELE e BARRETO, 2015). Esse foco é assumido pela própria empresa que passou a ter o seu slogan como “broadcast yourself”[3]. Nessa proliferação de material audiovisual de cunho autobiográfico, encontramos uma infinidade de canais pessoais, nos quais os produtores tendem a, dentre outras coisas, apresentar/expor suas vidas, numa espécie de mosaico entre as dimensões pública e privada das mesmas.

Com um pouco mais de dois milhões de inscritos[4], o canal JoutJout Prazer da jovem brasileira de 27 anos, Julia Tolezano, se destaca. A jornalista começou a postar os vídeos como uma forma de auto-aceitação, sem uma finalidade propriamente traçada. O seu primeiro vídeo, em maio de 2014, obteve 351.306 visualizações. Os vídeos não seguem um roteiro, não tem cenário fixo e contam apenas com JoutJout e uma câmera. Sua forma descontraída para abordar questões polêmicas, como a masturbação feminina, o feminismo e relacionamentos abusivos, conquistou muitos seguidores. No que se refere à mulher, Júlia Tolezano defende a liberdade sexual, o inconformismo com o machismo e a quebra de alguns tabus. JoutJout assume abertamente as suas vontades, direitos, anseios e desafios em ser mulher, jornalista e cidadã comum.

Nessa pesquisa, o principal objetivo é identificar as representações da mulher construídas pelos vídeos do canal Jout Jout Prazer e como elas se alinham à discussão de identidade de gênero e empoderamento feminino. Propomos a discussão da identidade feminina e da representação social da mulher deslocando a discussão do sentido biológico (que opõe homem e mulher através de sua natureza biológica apenas) para uma perspectiva que adota a categoria de gênero como uma construção social e cultural (RAGO, 1998).

2. Escolhas conceituais e procedimentos metodológicos

Historicamente, a mulher esteve submetida ao homem e com pouco espaço na vida pública. De um sujeito menos desenvolvido, que oferecia perigo por sua capacidade de seduzir, para uma companheira do homem (SILVA et al., 2005), o lugar da mulher na sociedade foi sendo modificado. No contexto brasileiro, nos últimos 100 anos, foram conquistados direitos como ao voto, ao estudo, ao trabalho e à capacidade de se candidatar aos órgãos públicos[5]. Todavia, mesmo com essa evolução perante os direitos civis, a mulher continua enfrentando preconceitos construídos culturalmente em relação a sua liberdade sexual, liberdade de expressão e comportamentos em ambiente público. Ainda hoje existem obrigações e características culturalmente atribuídas às mulheres apenas pelo fato de serem mulheres.

Essas características e obrigações supostamente caracterizadas como femininas parecem fazer parte de uma série de representações que a sociedade atribui culturalmente e socialmente ao sujeito mulher. Ancoramo-nos na perspectiva da psicologia social, notadamente nos trabalhos de Moscovici (2003), para quem as representações estão relacionadas às simbologias sociais são construídas e partilhadas coletivamente e se amparam nos conhecimentos e nas opiniões do senso comum adquiridos pelo indivíduo ao longo da vida, assim como pelas reapropriações de significados historicamente fundados.

Por este mesmo prisma, podemos dizer que a identidade social para Hall (2000) é definida pelo conjunto de papéis que desempenhamos. É um misto de posição e contexto. Estes papéis, que atendem à manutenção das relações sociais, serão articulados de maneiras diversas nos diversos momentos que vivenciamos. As escolhas identitárias são mais políticas que antropológicas, mais “associativas”, menos designadas. Estamos constantemente em negociação, não com um único conjunto de oposições que nos situe sempre na mesma relação com os outros, mas com uma série de posições diferentes. Desse modo, “a identidade torna-se uma ‘celebração móvel’: formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam.” (HALL, 2000, p.13).

No que se refere às questões de gênero, compreendemos, segundo Nobre e Faria (1997), que as identidades femininas e masculina são demarcadas socialmente com base na existência de papéis sociais e, por conseguintes em representações sociais, distintas e hierárquicas. Propõe-se uma desnaturalização do sistema que define as diferenças sexuais através simplesmente da natureza biológica dos indivíduos. O gênero é construído a partir de uma relação entre sujeitos socialmente constituídos em contextos históricos e culturais específicos refutando uma dimensão essencializante e fixa de constituição das identidades.

No contexto da modernidade, as características associadas às feminilidades são postuladas em oposição, complementariedade e subordinação ao ideal de masculinidade, conforme Diniz (2016):

Nesse processo, os homens foram apresentados como responsáveis, comedidos, equilibrados e estáveis. A racionalidade e a lógica também foram colocadas como características distintivas das masculinidades. Esses atributos, contudo, não prescindiam de outros, como a bravura e a coragem, reivindicados especialmente em momentos de guerra ou nos esportes. Oliveira (2004) destaca que esse conjunto de características resultou na definição do ideal ocidental de masculinidade imperante como trabalhador e guerreiro, o oposto do ideal de feminino tradicional, marcado pela fragilidade, sensibilidade, delicadeza, comedimento público, insegurança e instabilidade. (DINIZ, 2016, p. 15)

Estudar, pois, as representações de gênero nos proporciona um olhar mais atento para determinados processos que consolidam hierarquias entre o masculino e o feminino.  Podemos compreender esses quadros como sistemas de gênero – formas de operar nas relações sociais de poder entre homens e mulheres – que são frutos da cultura, de uma determinada sociedade e tempo histórico. Portanto, gênero quer dizer que homens e mulheres são produtos da realidade social e não decorrência da anatomia de seus corpos. Somos constantemente treinados, primeiramente na família e depois em ambientes como a escola, o trabalho e por dispositivos diversos como a mídia, para corresponder a quadros referentes ao masculino e o feminino.

Quando nos são apresentadas e possibilitadas outras formas de representação da mulher, que não apenas aquelas baseadas na ideia de feminilidades hegemônicas, acreditamos, ancoradas em Sardenberg (2017) que estamos diante de uma possibilidade, simultaneamente de processo e resultado, de empoderamento. Para a autora, este conceito pode ser explicado como:

(…) o processo da conquista da autonomia, da auto-determinação. E trata-se, para nós, ao mesmo tempo, de um instrumento/meio e um fim em si próprio. O empoderamento das mulheres implica, para nós, na libertação das mulheres das armas da opressão de gênero, da opressão patriarcal. Para as feministas latino-americanas, em especial, o objetivo maior do empoderamento das mulheres é questionar, desestabilizar e, por fim, acabar com a ordem patriarcal que sustenta a opressão de gênero (SARDENBERG, 2017, p. 49).

Em relação aos procedimentos metodológicos, nossa pesquisa possui caráter qualitativo, com finalidade analítico-descritiva. Para fins de análise, adotamos como referencial metodológico a Análise do Discurso, notadamente de orientação francesa. Entendemos nosso objeto de estudo como um objeto multidimensional resultante da interação entre o mundo, enquanto realidade, e da linguagem, enquanto produção social de forma e sentido. Assim, em nossa análise, procuramos identificar as marcas discursivas (seleção lexical, pressupostos, subentendidos, estratégias discursivas) que nos permitiam sustentar a projeção ou a desconstrução de determinadas identidades femininas e de representações relacionadas a questão dos gêneros na sociedade.

Para categorizar os vídeos canal JoutJout Prazer[6], estabelecemos como recorte temporal a coleta de dados no período de três meses: março, abril e maio de 2017, reunindo um total de 23 vídeos. Os vídeos foram organizados em uma tabela, que continha as seguintes informações: a) Data de publicação; b) Título; c) Duração; d) Tema Principal; e) Aspectos de Narrativas de Vida; f) Temas Secundários e g) Link de cada vídeo.

Entre os 23 vídeos coletados, identificamos sete vídeos como relevantes para a nossa análise, já neles eram trabalhadas, de modo mais explícito, as feminilidades e a identidade de gênero no canal. Os títulos dos 7 vídeos são: 1) Era uma vez cachos[7]; 2) Ppk tem 2 furinhos, pra começar[8]; 3) Quando pensamos em programação[9]; 4) Sorvete de morango[10]; 5) É óbvio que você tá ansioso[11]; 6) As pessoas não estão aí pra agradar o seu senso estético[12]; 7) Técnica de engasgamento antimachismo leve[13].

O nosso próximo passo foi fazer a transcrição verbal e icônica dos sete vídeos para facilitar nossa observação para, em seguida, analisar cada vídeo separadamente. No final de cada análise procuramos estabelecer processos de categorização temáticas que demarcassem as recorrências nas análises. Identificamos quatro principais temas: 1) Corpo/Beleza; 2) Ocupações/Habilidades; 3) Sexualidade e 4) Representatividade/Empoderamento

3. Resultados e discussão

Para facilitar a apresentação dos nossos resultados, faremos os apontamentos pertinentes a cada categoria temática estabelecida na análise dos dados. Foi a partir desses temas que refletimos sobre a forma como a youtuber tangencia a discussão de gênero e evidencia representações femininas.

3.1 Corpo/Beleza

A temática corpo e a beleza feminina aparece de diferentes modos dentro do nosso recorte. Contudo, prevalece a representação do corpo e da beleza ancoradas na ideia da insatisfação corporal feminina e na busca pelo atendimento de padrões estético corporais dominantes. Para a youtuber, a insatisfação corporal feminina é uma condição inegável e natural, em razão de um contexto histórico especifico – o da pós-modernidade, para as mulheres desse tempo. Para defender seu ponto de vista no vídeo “É óbvio que você tá ansioso”, por exemplo, ela recorre à narrativa de vida e relata que, na sua época de adolescência – época em que vários conceitos próprios são consolidados e a autoestima é construída – não estavam disponíveis outras referências femininas, se não os corpos parecidos com o corpo da Jennifer Lopez (corpos correspondentes a padrões de beleza ocidentais de pele clara, cabelos lisos e corpo magro).

A falta de representatividade na mídia gera buscas intermináveis para alcançar o corpo que está em destaque, prejudicando a autoestima e o modo com o qual nos relacionamos com o outro. Como mencionado anteriormente, “as idealizações desse corpo são, na maioria das vezes, reflexo de imposições da grande mídia e é notório como os padrões de beleza influenciam na construção de uma identidade própria” (LOUBACK; PROCÓPIO-XAVIER, 2017, p.2). Dessa maneira, a forma como experimentamos nossos corpos e imagem acaba por estar diretamente relacionada com os padrões de beleza vigentes sustentados e distribuídos pelos meios de comunicação. Nessa perspectiva, entendemos o corpo como fruto de um determinado espaço e tempo, que está submetido aos valores de uma época, ou seja, o corpo genético é um corpo atravessado por normas e regularidades e também um lugar do controle e da formação do “eu” (CORBIN, VIGARELLO, COURTINE, 2011).

Nesse sentido, em seus vídeos, a youtuber parece querer fomentar algumas discussões que destoem da necessidade de atendimento dos padrões estético-corporais dominantes.  Destacamos dois exemplos como principais. No vídeo “Era uma vez meus cachos”, JoutJout confessa que apesar de possuir cabelos enrolados, durante muito tempo, se submeteu ao padrão de cabelo liso e que só depois de algum tempo passou a amar seu cabelo. Como Le Breton (2012, p.7) adverte: “antes de qualquer coisa, a existência é corporal” e por isso sentimos na pele as normas hegemônicas e os padrões naturalizados da sociedade. Assim, sua discussão sobre cabelos cacheados é significativa já que o que persiste como belo e como padrão são os cabelos lisos. Há alguns anos não seria possível encontrar informações sobre os cuidados com os cachos e muito menos produtos específicos para esse tipo de fio. A presença dos padrões estético-culturais é tão incisiva que influencia diretamente a economia cosmética, além das nossas decisões pessoais em nos modificarmos para nos vermos mais próximos de um molde almejado. Ela justifica a produção do vídeo pela necessidade em compartilhar sua autoconfiança e a importância da afirmação identitária pela aceitação dos cabelos.

Outro exemplo que propõe um questionamento das representações ancoradas nos padrões estético-corporais está no vídeo “As pessoas não estão aí pra agradar o seu senso estético”, no qual JoutJout dialoga com Caio, seu ex-namorado sobre a possibilidade de haver ou não o bonito e o feio. O mote do vídeo é sustentar a ideia de que beleza e feiura são construções histórico-sociais. Contudo, percebemos uma dificuldade na suspensão dessas construções sociais vigentes para a beleza, quando a youtuber alega que está muito satisfeita com os elogios por ela recebidos para suas axilas, exibindo-as depiladas e “cheirosas”. Nesse momento, JoutJout reafirma um padrão estético-cultural dominante: axilas brancas, depiladas e higienizadas. Em Corbin, Vigarello e Courtine (2011), é relatado um novo higienismo, uma tendência à desodorização corporal absoluta que começa a se concretizar a partir do final do século XVIII. Assim, sua exposição, ao invés de desconstruir e ampliar formas de experimentar o corpo, reforça noções de apresentação do corpo do sujeito-mulher. Além disso, no contexto da sociedade brasileira (e de outros países ocidentais) a axila com pelos tornou-se uma representação estereotípica para caraterização de mulheres feministas por grupos tradicionais e machistas, propagadores da representação de que mulheres se vinculam a um ideal de beleza, higiene e assepsia.

Ainda referente às questões do corpo e da beleza, outra discussão que o canal aborda diz respeito ao conhecimento (ou mais especificamente a falta de conhecimento) que as mulheres possuem sobre seus corpos. No vídeo “Ppk tem 2 furinhos, pra começar”, a youtuber menciona um calendário lunar produzido por uma parteira que trabalha com ginecologia natural e que percebeu, em uma viagem pela América Latina, a falta de intimidade que várias mulheres tinham com seus próprios corpos. JoutJout exemplifica a falta de intimidade das mulheres com seus corpos por meio de dois exemplos: 1. Não são todas que sabem que existem duas aberturas na genitália feminina – o orifício urinário e o vaginal – e 2. Não são todas que conseguem interpretar o muco vaginal.

Contudo, ainda que Julia apresente exemplos que denotam o desconhecimento das mulheres sobre seus corpos, ao justificá-lo, ela transfere a responsabilidade desse conhecimento para outras mulheres.  Segundo sua defesa, essas noções deveriam ser passadas de mãe para filha, mas quando uma geração de mulheres não sabe, não haverá a transferência de conhecimento para as próximas gerações. Identificamos nesse argumento de Julia um grande problema: ao dizer que informações sobre o corpo feminino deveriam ter sido passadas de mãe para filha, a youtuber acaba culpabilizando a mulher, sendo que esse desconhecimento faz parte da estrutura social, patriarcal e machista social, à qual estamos submetidas.  Nobre e Faria (1997, p.16) explicam a origem da falta de intimidade das mulheres com seu próprio corpo: “A repressão à sexualidade feminina em boa parte se dá pelo desconhecimento do corpo e pela imposição de regras rígidas do que significa ser uma mulher ‘honesta’ ”.

Especialmente em uma sociedade marcada pela influência religiosa como a brasileira, as mulheres não são e não eram estimuladas a conhecer o próprio corpo, tampouco dispõem de mecanismos eficientes de disponibilização de informações. As políticas públicas de saúde da mulher são recentes em nosso país e, durante muito tempo (até início dos anos 2000), se direcionavam apenas pela condição de gestante da mulher. No âmbito da educação, é comum encontrarmos nas escolas, pais que reclamam do conteúdo de educação sexual ou de explicação sobre o aparelho reprodutor para os filhos, tornando-se essa, inclusive uma premissa do atual governo brasileiro (não tratar assuntos que digam respeito a sexualidade nas escolas).

3.2 Ocupações/Habilidades

Em dois vídeos (“Técnica de engasgamento antimachismo leve” e “Quando pensamos em programação”) JoutJout pretende problematizar o fato da sociedade estigmatizar profissões e papéis como tipicamente femininos/masculinos. Entendemos que essa divisão sexual do trabalho foi sendo construída ao longo do tempo, assim como em outras práticas, como o trabalho doméstico e certos esportes.

Na indústria, as mulheres são embaladoras, montadoras e costureiras, funções que exigem habilidade manual, coordenação motora fina, paciência. As habilidades para exercer essas profissões foram sendo desenvolvidas no processo de educação das meninas: brincando de casinha, cuidando dos irmãos, bordando, ajudando a mãe no trabalho doméstico. As pessoas “esquecem” que as meninas precisam treinar para aprender tudo isso e agem como se toda mulher já nascesse com essas “aptidões”, como se fosse uma dádiva da natureza (NOBRE; FARIA, 1997, p. 14).

Por meio de seus vídeos, a youtuber pretende demonstrar como tais representações ainda persistem em nossa sociedade, mas também pretende apresentar situações de possíveis rompimentos com essas representações.

No primeiro vídeo, o discurso de JoutJout se organiza em tom de aconselhamento para um como agir diante uma piada machista. Para tanto, ela conta a história de uma amiga que é piloto de avião, com o intuito de fornecer indícios de uma conduta empoderada e questionadora diante de piadas machistas. Sua amiga, diante de tal contexto, pede explicação, ao invés de dar continuidade a piada, quando um taxista “brinca” dizendo que vai para o lado oposto quando ela estiver pilotando. O conselho central do vídeo é, pois, insistir no questionamento, de modo a denotar a incompreensão da piada a fim de deixar o interlocutor (no caso relatado, o taxista) em uma situação de visível desconforto e embaraço em ter que explicar a conduta preconceituosa.

No segundo vídeo, a discussão relativa a profissões estereotipadas e trabalhos considerados masculinos é feita em conjunto com Juliana, desenvolvedora de softwares, que relata sua trajetória no mundo da programação, por meio de um vídeo publicitário para o Alura[14], site que oferece cursos online de diversas áreas da tecnologia. Juntas elas desmistificam o envolvimento das mulheres com o meio profissional de programação por meio de duas desconstruções de conceito: 1. Programação é difícil e 2. Programação não é para mulheres. JoutJout afirma que o motivo para alguém não trabalhar com computação tem que ser a falta de prazer pela área e não por um motivo de gênero. Por tal informação, a youtuber procurar desconstruir a representação de competências e habilidades femininas relacionadas exclusivamente ao domínio da emoção, da sensibilidade e diametralmente opostas àquelas relacionadas à racionalidade, à lógica e que supostamente seriam de exclusividade masculina.

3.3 Sexualidade

JoutJout discute sobre a sexualidade e a heteronormatividade[15], no vídeo intitulado “Sorvete de morango”. Sua problematização é desenvolvida por meio de uma história vivida por ela e Caio na Índia, quando os dois almoçam com um indiano e o assunto era sobre as notas de dinheiro da país. O rapaz indiano confessa não gostar de uma determinada cédula monetária “Por que ela é rosa. ”. Como se a justificativa não fosse o bastante, eles insistiram e perguntaram: “Mas qual o problema dessa nota ser rosa? ”. Ele logo respondeu: “Looks gay”. Traduzindo para o português, segurar a nota rosa, para ele, o faria parecer gay.

O episódio relatado evidencia uma representação estereotípica da sexualidade, sobretudo daquela que sinaliza uma orientação sexual desviante do padrão heteronormativo. A youtuber traz atenção para dois pontos: 1. O pânico de ser gay e 2. A fragilidade da condição de ser hétero. Parece que para esse indivíduo, a sexualidade está necessariamente vinculada ao gênero e este automaticamente vinculado a características intrínsecas e arbitrárias como a cor de um certo objeto. Assim, já que a cor rosa (na sociedade brasileira e aparentemente na sociedade indiana também), na maioria das vezes, está atrelada ao sexo feminino, ao se identificar com a cor rosa, ele estaria se apropriando de uma característica feminina destinada apenas às mulheres. Essa atitude não leva em conta as diferentes possibilidades ao desenvolver uma identidade de gênero a partir das diversas experiências sociais. É possível ser mulher e não gostar da cor rosa, por exemplo, e, ainda, ser um homem que gosta da cor rosa e não ser homossexual, por que esse gosto não está relacionado com sua orientação sexual.

JoutJout relata que na sua adolescência, os rapazes da escola a chamavam de lésbica por que ela gostava de usar calças largas e de jogar futebol. Nessa situação, novamente a heterossexualidade é colocada em suspeição por um aparente desvio das expectativas e, portanto, da representação social vigente, do que uma mulher deveria vestir ou fazer para ser considerada hétero. Julia estaria divergindo dos moldes femininos e sua sexualidade logo fora questionada. Da mesma forma como a cor rosa tendeu, na conversa com o indiano, a destituir a masculinidade daquele cidadão.

No vídeo, a youtuber aponta alguns elementos, que colocariam o sujeito homem hétero em suspeição, como cozinhar, dançar, limpar a casa e lavar as roupas. Isso ocorre já que, culturalmente, essas práticas foram conferidas às mulheres, atribuindo à essas uma representação social marcada por supostas feminilidades dominantes. Assim, a youtuber sustenta a ideia que, se nos basearmos nas representações dominantes, a masculinidade estaria em suspeição quando um homem apresentasse comportamentos desviantes do padrão.

3.4 Representatividade/Empoderamento

Praticamente todos os sete vídeos selecionados abordam, de alguma maneira, a discussão de empoderamento feminino (conforme Sardenberg, 2017), contribuindo para renovar ou fortalecer diferentes representações femininas. Questionar, desestabilizar padrões estético-culturais dominantes se apresenta como uma possível forma de alcançar o empoderamento feminino. Ao compartilhar a sua transição capilar[16], por exemplo, a youtuber cumpre com o papel de visibilizar e refletir sobre o seu percurso ao assumir os seus cachos, podendo provocar ou não processos de empoderamento nos seus seguidores. Em outra ocasião, no vídeo em que ela discute o desconhecimento sobre o corpo feminino, Julia anuncia: “Hoje vamos falar sobre… Retomar o poder sobre a sua xereca! ”. Ela aponta tanto uma necessidade em resgatar o poder e o conhecimento sobre as funcionalidades do corpo, como também uma necessidade em combater opressões que nos afastam dessa conexão corporal.

Como apresentado por Nobre e Faria (1997, p.10), as mulheres, principalmente, são aprisionadas em moldes totalizantes: “Os modelos femininos em nossa sociedade são criados a partir de símbolos antagônicos: Eva e Maria, bruxa e fada, mãe e madrasta. Essas definições propõem o que é bom para as mulheres e culpam-nas quando não respondem a esse padrão”. Nesse sentido, descontruir modelos totalizantes e ampliar essas dicotomias fazem parte de um processo de empoderamento, no qual é possível pensar em outros formatos de ser.

Na discussão sobre diversidade feita nos vídeos “É óbvio que você tá ansioso” e “As pessoas não estão aí para agradar o seu senso estético” há um esforço para ampliar esses horizontes. No primeiro vídeo, Julia evidencia a intensa ansiedade gerada pelas expectativas sociais sobre os corpos das mulheres, além de refletir no comportamento feminino e na função social das mulheres. A falta de representatividade também recai sobre nossa compreensão do belo e do feio – tema do segundo vídeo mencionado. Nesse momento, ela procura defender a inexistência do bonito e do feio, já que, segundo ela cada um tem o seu “bonito” e “feio” e, por isso, não podemos querer viver dentro dos enquadramentos de sentido dos outros. O poder em escolher e determinar qualquer coisa para si próprio está relacionado ao empoderamento como Sardenberg explica:

(…) poder é a capacidade de fazer escolhas. Escolha, no caso, implica na possibilidade de alternativas. Só que algumas “escolhas” têm maiores consequências do que outras em nossas vidas. Nessa perspectiva, o empoderamento pode ser entendido como o processo através do qual se expandem os limites de se fazer escolhas estratégicas, num contexto no qual isso era antes impossível/proibido/negado (SARDENBERG, 2017, p. 54).

Dessa forma, ainda que a youtuber considere os modelos apertados que as mulheres são enquadradas nas normas sociais e o clima violento gerado por essas perspectivas, ela procura argumentar a favor de um amplo leque de apresentação no mundo, seja por meio do trabalho, da beleza ou do prazer. Como indicamos, não há uma garantia de que as pessoas que consomem o conteúdo do canal terão novos horizontes em vista para tomar novas decisões sobre si, mas a presença dessas desconstruções e novas construções refletem a iniciativa de Julia em oferecer um discurso de empoderamento.

4. Considerações finais

O objetivo central deste trabalho foi identificar as representações da mulher construídas pelos vídeos do canal Jout Jout Prazer e discutir como elas se alinham à discussão de identidade de gênero e empoderamento feminino. Podemos dizer que ela procura manifestar o sujeito mulher dentro de uma multiplicidade de aspectos. Constatamos que JoutJout apresenta essa mulher como alguém que sofre diversas intromissões da sociedade, que está submetida a padrões rígidos, que está constantemente preocupada com o seu corpo e que é questionada sobre suas habilidades. Mas, mesmo assim, nas discussões feitas pela youtuber, há uma tentativa em desconstruir essa realidade que está naturalizada na sociedade.

Sobre a ótica da representatividade e empoderamento, sua fala contribui, seja por encarar com humor e naturalidade os assuntos tabus ou até mesmo por questionar os papéis naturalizados atribuídos aos homens e mulheres, para que esse sujeito mulher, que é fruto desse tempo e desse espaço, assuma seu lugar de falar, para além das desigualdades e objetificações que é submetido. Assim, JoutJout procura oferecer e refletir sobre as diferentes potencialidades do sujeito-mulher para experimentar a vida e encarar uma sociedade herdada pelo machismo e pelo patriarcado.

Apesar disso, foi possível perceber que, em certos momentos ela reproduziu discursos e padrões que envolvem esse sistema de gênero totalizante e desigual. Percebemos também que não há uma problematização feita acerca da mulher trans, nem mesmo a atenção para as especificidades de mulheres não brancas e de outras classes sociais – já que a inserção das histórias de vida da protagonista do canal é muito forte e acabam por retratar predominantemente as realidades vividas por ela.


[1] Essa pesquisa foi desenvolvida com o apoio do edital PIBIC/FAPEMIG no período de 2017 e 2018.

[2] https://www.youtube.com/

[3] Tradução nossa: “Transmita-se para o mundo”.

[4] Disponível em: https://www.youtube.com/user/joutjoutprazer.

[5] Notícia Disponível em: http://www.brasil.gov.br/cidadania-e-justica/2014/03/mulheres-conquistam-direitos-nos-ultimos-100-anos.

[6] Até o dia 09 de março de 2018, o canal possuía um acervo de 369 vídeos.

[7] https://www.youtube.com/watch?v=vnwTCI2C5zE

[8] https://www.youtube.com/watch?v=hhrXilByrOM

[9] https://www.youtube.com/watch?v=AdFU6l4fL_E

[10] https://www.youtube.com/watch?v=sZxL8l1tsXI

[11] https://www.youtube.com/watch?v=vLI_Dn258ug

[12] https://www.youtube.com/watch?v=83BMiGieYfc

[13] https://www.youtube.com/watch?v=2cSyAKdPlZQ

[14]  Disponível no endereço www.alura.com.br

[15] Esse termo está relacionado à naturalização da heterossexualidade, como afirma Louro (1999, p.13): “A heterossexualidade é concebida como “natural” e também como universal e normal. Aparentemente supõe-se que todos os sujeitos tenham uma inclinação inata para eleger como objeto de seu desejo, como parceiro de seus afetos e de seus jogos sexuais alguém do sexo oposto. Consequentemente, as outras formas de sexualidade são constituídas como antinaturais, peculiares e anormais”.

[16] Transição capilar é uma fase marcada especialmente pelo processo em que a mulher ou o homem decidem abandonar os alisamentos e outros procedimentos com química aplicados nos cabelos para retornar a exibir os fios em sua formatação original: ondulada, cacheada ou crespa.

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    By: Carolina Souza Louback e Mariana Ramalho Procópio

    Carolina Souza Louback (Federal University of Minas Gerais, Brazil) Master student at the Federal University of Minas Gerais (UFMG), Brazil, in Social Communication. Graduated in Social Communication – Journalism from the Federal University of Viçosa (UFV), Brazil. carolinaloubackk@gmail.com. Mariana Ramalho Procópio (Federal University of Viçosa, Brazil) Professor of the Department of Social Communication and the Graduate Program in Languages and Literature (Master’s level), at the Federal University of Viçosa (UFV), Brazil. Post-doctoral from Lancaster University, UK. PhD in Linguistic Studies from the Federal University of Minas Gerais (UFMG), Brazil. Co leader of the research group DIZ – Discourses and Aesthetics of Difference. mariana.procopio@ufv.br.

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